Garçons dançando o "meme do caixão" servem clientes em Gramado, RS. Uma reportagem exibida pela GloboNews ontem (17/05/2020) se coloca a pergunta: "por que algumas pessoas desafiam e até debocham da pandemia do coronavírus"? Entre os exemplos ultrajantes estão as festas de arromba em bairros nobres de Florianópolis em plena quarentena; uma brincadeira de muito mau gosto num restaurante, inspirada no meme dos animadores de enterro de Gana; um cliente que entra em conflito com funcionários de uma farmácia por se recusar a usar máscara como proteção ao contágio. Por fim o arrombado até aceita pôr a máscara, mas no topo da cabeça, alegando que não havia nenhuma especificação no decreto obrigando o uso da proteção que indicasse que ela deveria ser colocada no rosto. 😒
Uma neurocientista propõe a hipótese de que negar a gravidade da pandemia seria um mecanismo de defesa pras pessoas que não conseguem enfrentar a realidade dos fatos. Outra hipótese, aventada pelo autor da matéria, é a de que a empatia humana estaria em baixa. Obviamente, trata-se de um clichê tentador quando se lamenta a ausência de padrões mínimos de respeito pela dor alheia. No entanto, a empatia humana continua onde sempre esteve: voltada pra aqueles com quem nos identificamos. A tirada atribuída a Josef Stalin já é clássica: "uma morte é uma tragédia, mil mortes são uma estatística". É impossível não captar a dose de realismo cínico contida na frase: nos compadecemos com pessoas e não com números. O psicólogo Paul Bloom, no seu manifesto Against empathy: the case for rational compassion ("Contra a empatia: em defesa da compaixão racional", ainda sem tradução pro português, infelizmente), fornece exemplos tragicômicos em que excessos de boa vontade motivados por empatia irrefletida acabam, em termos objetivos, mais atrapalhando do que ajudando na resolução dos problemas. Como no massacre da escola primária Sandy Hook, na cidadezinha de Newtown, Connecticut, em 2012, mais um dos horrivelmente tradicionais assassinatos em massa perpetrados por atiradores nos EUA. Tais eventos bombásticos e estarrecedores causam grande comoção nacional, mas são uma nulidade estatística em relação à taxa anual de homicídios no país, a qual persiste como um ruído de fundo na atenção popular. Bloom relata como a infinidade de presentes enviados por americanos solidários às famílias de Newtown, longe de ajudar, acabou acarretando um problema logístico pra cidade. Equipes tiveram que ser mobilizadas pra remanejar as lembrancinhas pra outros lugares e, mesmo depois de as autoridades locais terem desincentivado o envio de presentes, as pessoas não pararam de os enviar. Desmistificada diante de consequências concretas, a capacidade empática deixa de ser uma panaceia pra resolução de problemas sociais complexos. Mas mesmo sem recorrer ao remédio pouco eficaz de nos colocarmos na posição dos "outros" (a verdade é que são muitos outros, distantes e difusos, pra que possamos nos identificar com todos), a questão da reportagem permanece: como explicar o comportamento estúpido e insensível de tanta gente em meio à pandemia? Uma pista fundamental está num pilar da síntese evolutiva moderna proposta mais popularmente pelo etologista (biólogo que estuda comportamento animal) Richard Dawkins. Em seu livro de 1976, O gene egoísta, o britânico defende a centralidade da perpetuação dos genes, não das espécies, no motor da evolução. Afinal, o que é passado adiante são os genes de alguns indivíduos, não todo o pool genético de uma espécie. O próprio Dawkins admite que não há contradição em tomar o indivíduo, em vez do gene, como unidade da seleção natural, sendo mais uma questão de ênfase em níveis diferentes. Pois bem, percebamos que os comportamentos selecionados na longa história natural da nossa espécie devem ter favorecido o sucesso de alguns indivíduos, não da comunidade humana global. Quem se sacrificava muito pelos companheiros mais egoístas teve menos chances de deixar descendentes pra mudar essa história. É importante notar que a premissa da psicologia evolucionista (de que estou fazendo uso muito grosseiro aqui) é que comportamentos instintivos que herdamos e que podem causar muitos problemas hoje (o exemplo clássico é a compulsão por consumir alimentos altamente calóricos) foram bem-sucedidos num período crítico da nossa história natural, muito antes de cultivarmos comida, domesticarmos animais e construirmos centros urbanos. Nessa época longínqua, os humanos eram poucos e estavam à merce da sua capacidade de encontrar alimento e de se defender de predatores naturais e de tribos inimigas. Faz todo sentido que tenhamos desenvolvido estratégias de cooperação, reunidas sob a rubrica "altruísmo", com outros membros próximos com quem formamos grupos, tribos, comunidades. É aí que entra a importância fundamental da empatia pro nosso sucesso como espécie. A empatia recíproca nos permite consolidar laços de amizade e pertencimento ao grupo em que convivemos. É nesse ponto que o que é bom pro grupo também é bom pro indivíduo, porque foi vivendo em comunidades que pudemos frutificar e nos multiplicar muito melhor do que jamais conseguiríamos isoladamente. De fato, somente uma parte muito pequena do número total de espécies animais são espécies chamadas sociais, mas elas certamente representam muito mais da metade da biomassa animal do mundo (formigas, cupins, ratos, gado, humanos). Contudo, nossa vida social definiu o que seria um dilema perene na nossa história individual: o interesse coletivo X o interesse individual. E também é bom notar que o grupo natural humano, em que conseguimos nos identificar e sentir empatia pelos demais membros, é bem menor do que os estados-nação modernos. Tudo isso posto, fica óbvio que não precisamos evocar nenhum mistério metafísico sobre a origem e natureza do mal pra explicar por que tantas pessoas agem como canalhas sem nenhuma empatia pelos sentimentos dos que moram a quilômetros de distância, ou mesmo ali do lado no bairro mas sem nenhuma conexão afetiva importante pras suas vidas individuais. Pode ser muito mais custoso psicologicamente, e com consequências sociais muito mais concretas pro indivíduo, ter de recusar um convite de amigos e abrir mão do bem-estar imediato do que incorrer numa improvável ofensa à memória de alguém que nem sequer conhecíamos, que não pode nos afetar e que provavelmente nem tomará conhecimento dessa nossa hýbris. É bom lembrar que não temos razão ainda pra supor que o vírus tenha infectado muito mais do que 5% da população brasileira (não por razões naturais mas justamente graças ao isolomento a que muitos se impõem), logo as chances de se contaminar no próximo encontro ainda são relativamente pequenas, e que a taxa de letalidade da COVID-19 gira em torno de 1%, sendo muito menor pra pessoas jovens sem comorbidades. O que as pessoas estão fazendo nesse caso é tomar decisões racionais, não sem certo cálculo de risco, que colocam seu bem-estar imediato à frente do interesse coletivo, que é conter o espalhamento do vírus. Este seria um enorme ganho coletivo futuro, mas que custa uma renúncia bem concreta hoje pro indivíduo. Por fim, antes que me acusem de justificar o comportamento deplorável dos que furam quarentena pra curtir a vida, é bom deixar claro que uma explicação das causas não deve ser confundida com uma justificativa das consequências. Ter um olho na evolução humana permite enxergar com clareza as propensões que favorecem esses comportamentos egoístas e não estranhar que eles existam. Felizmente, tais comportamentos não representam um destino inescapável pra nós. Nosso cérebro também é dotado de um córtex pré-frontal que nos permite agir de maneira compassiva e racional e não sucumbir fatalmente a esses instintos mais básicos. O que uma perspectiva científica nos possibilita é compreender melhor o que de fato acontece no mundo. As implicações morais ficam à cargo da ética. Se me perguntassem pessoalmente o que acho desses tipos aí, eu não titubearia: pau no c* desses filha-da-p***! Cabe à sociedade desaprovar esses comportamentos e às autoridades públicas puni-los.
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